Justiça vai ao abrigo para atender crianças em acolhimento

Quando se trata de definir o futuro de crianças que vivem em abrigos e sem o suporte de uma família, cada minuto é precioso. Com base nisso, nesta semana, o juiz Renato Rodovalho Scussel, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), se deslocou até o Lar Bezerra de Menezes, situado na região administrativa de Ceilândia Norte, onde vivem quinze crianças de zero a seis anos. Lá, realizou uma audiência com representantes do Conselho Tutelar, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) com objetivo de definir o destino das crianças, da melhor forma possível. Audiências como esta - realizadas dentro dos abrigos e denominadas “audiência concentradas”- têm se mostrado fundamentais para que a Justiça possa agir rápido: seja para assegurar a restituição do poder familiar em um ambiente seguro, seja para determinar a inclusão da criança no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), coordenado pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Chegar ao Lar Bezerra de Menezes não é tão fácil, já que não há placas nas esquinas de Ceilândia Norte, e o local, assim como a maioria dos abrigos, não é identificado – de fora, parece uma casa como as outras. Por dentro, o abrigo é aconchegante e a equipe se desdobra, com ajuda de voluntários, para dar conta do atendimento às crianças. A casa está localizada a menos de quinze minutos do Sol Nascente, a maior favela do Distrito Federal e uma das maiores da América Latina. Durante a reunião, na sala do abrigo, é possível ouvir, de vez em quando, o choro de bebês que brincam na sala ao lado e sentir o cheiro agradável do lanche que é preparado para as crianças. A união de todos os envolvidos no processo permite que a situação da criança que está sob medida de acolhimento seja reavaliada, facilitando a comunicação entre os órgãos e evitando burocracias que acabam protelando a decisão. “Nessas audiências, muitas vezes, conseguimos resolver em trinta dias o que antes demorava até seis meses”, diz o juiz. O juiz da Vara de Infância e da Juventude Renato Rodovalho se reúne com representantes de persos órgãos para definir o destina das crianças acolhidas FOTO: Luiz Silveira/Agência CNJ Agora é tarde Um dos primeiros casos enfrentados pelo grupo foi o de Jéssica, 10 anos, acolhida desde setembro de 2016 por estar em situação de risco e vulnerabilidade – a menina não ia à escola e era abusada frequentemente pelos ex-companheiros da mãe. Enquanto esteve acolhida, passou um fim-de-semana com a mãe e foi novamente abusada por mais um homem. A sugestão do Ministério Público foi pelo encaminhamento à adoção, já que, durante o tempo em que a menina esteve acolhida, não foi possível desenvolver, na mãe, a “capacidade de proteção em relação à sua filha”. Após ouvir o relato, o juiz Rodovalho determina que se continue buscando uma família para a menina e, caso não a encontrem no CNA, que seja encaminhada à adoção internacional. “Precisamos ser rápidos. Nessa idade, a gente ainda consegue adoção”, diz o juiz. “Fenotípico inadequado” Nas audiências, há casos de crianças que sofreram mais de um abandono: depois de terem sido adotadas, são novamente abandonadas pelos mais persos motivos. A Vara de Infância e da Juventude já acompanhou casos como o de casais que devolveram uma criança adotada porque ela não correspondia aos “traços fenotípicos adequados”. Na audiência no Lar Bezerra de Menezes, foram discutidos casos de crianças que passaram por mais de uma “devolução”, como de dois irmãos, de oito e dez anos, que foram parar no abrigo, pela primeira vez, em 2012. Na ocasião, o pai perdeu a guarda das crianças por conta de seu alcoolismo. Em tratamento, no mesmo ano conseguiu recuperar os filhos. No entanto, meses depois teve nova recaída e a negligência com os filhos fez com que eles fossem novamente para o abrigo. Em 2013, uma tia obteve a guarda das crianças, mas, por conta de maus tratos e abusos psicológicos cometidos por ela, mais uma vez as crianças foram acolhidas na instituição. Em setembro de 2016, os irmãos começaram um estágio de convivência com uma família e, em dezembro, foram finalmente adotados. No entanto, haveria ainda outro episódio triste na história deles. Em maio deste ano, os irmãos foram devolvidos ao abrigo pela família adotiva, alegando problemas de convivência com as crianças. “Foram devolvidos, e agora?”, questiona o juiz Rodovalho. O magistrado é informado que os irmãos estão prestes a iniciar estágio de convivência com um outro casal que pretende adotá-los e a equipe torce para que agora tudo corra bem. Além disso, a rede Anjos do Amanhã, programa do TJDFT que auxilia crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, conseguiu uma psicóloga voluntária que tem ido ao abrigo para atender aos irmãos. Histórias que se repetem Rebeca, de apenas oito meses, já nasceu na instituição de acolhimento: sua mãe, de 16 anos, também morava em um abrigo. Da mesma forma, seu pai passou a vida toda em uma instituição, local em que o casal se conheceu. Dentro do abrigo, a mãe de Rebeca costumava deixá-la desamparada e sem alimentação, principalmente por ser usuária de drogas. O bebê teve de ser acolhido em outra instituição, o Lar Bezerra de Menezes, que tentou uma reaproximação com a mãe. Apesar de demonstrar interesse pela filha, a mãe acabava se desorganizando pelo envolvimento com traficantes e o vínculo era rompido. A repetição de situações de acolhimento que atravessam gerações, como no caso de Rebeca, é bastante comum. Outro quadro frequente é o de acolhimentos sucessivos em uma mesma família. É o caso de Vítor, de apenas um mês, que nasceu prematuro e cujos pais são usuários de drogas. Os pais, que costumam usar drogas em casa na frente de outras crianças e rejeitam qualquer tratamento, nunca visitaram o bebê na instituição. A mãe de Vitor possui outros três filhos acolhidos em outros estados e o pai já perdeu a guarda de uma filha, do casamento anterior, por conta de abuso sexual. Depois de ouvir todos os presentes na audiência, o juiz Rodovalho determinou que a criança seja incluída no cadastro para adoção. No caso de Rebeca, a decisão pela adoção ainda não é certa. Existe uma avó materna que tem interesse em sua guarda, motivo pelo qual o juiz liberou as visitas ao abrigo para que a equipe possa verificar a possibilidade da criança morar com ela. Além disso, determinou que seja feita uma investigação para confirmar a paternidade de Rebeca, bem como investigação da situação do pai e sua família. “Dentro de, no máximo, seis meses, vamos finalizar o caso”, diz o juiz. Do presídio ao abrigo A pequena Sheila, de um ano, nasceu dentro da Penitenciária Feminina do Distrito Federal conhecida como “Colméia”, onde sua mãe cumpria pena por tráfico de drogas. Aos sete meses, foi parar na instituição de acolhimento, após ter sido abandonada pela mãe na Casa de Santo André, que atende pessoas em situação de rua e dependentes químicos. A mãe de Sheila é usuária de drogas desde os onze anos e já teve outros cinco filhos que foram encaminhados para adoção. Para Sheila, no entanto, a mãe parece tentar um destino diferente. De acordo com as técnicas que acompanham o caso, a mãe, que está em prisão domiciliar, visita a filha todos os finais de semana e quer se organizar para não perder a guarda de Sheila. A percepção da equipe é que o tempo de convívio dentro da Colméia fez com que ela desenvolvesse um grande afeto pela filha. A situação é complexa: por um lado, há o desejo da mãe em recuperar a guarda, mas, por outro, existe uma grande dificuldade em se organizar de fato para isso. O juiz decidiu dar um prazo de 90 dias para que a equipe apresente um relatório favorável ou desfavorável à mãe, para que possa concluir o processo. Desfechos surpreendentes Quando Isaac, de seis meses, foi parar no abrigo, toda a equipe, inclusive o próprio juiz, achou que seria um caso muito difícil de se resolver. O menino tem síndrome de Down e má-formação intestinal, o que o fez passar por cirurgias assim que nasceu. A mãe possui déficit cognitivo e apresentava dificuldades em cuidar do bebê. O pai, por sua vez, recusava-se a tomar os medicamentos para esquizofrenia e estava desempregado. Para agravar o quadro, o relacionamento dos pais com a família extensa – como avós e tios – mostrava-se difícil e distante. No entanto, seis meses após seu nascimento, os pais conseguiram se reestruturar, enquanto o abrigo conseguiu oferecer o acompanhamento médico necessário para que o menino se desenvolvesse. O pai decidiu aderir ao tratamento para seu problema e os laços com a família extensa foram restabelecidos. Ao realizar visitas surpresas na casa dos pais, a equipe técnica constatou que a família já está apta para receber Isaac e os tios e primos estão dispostos a auxiliar nos cuidados necessários. “Achávamos que esse caso seria muito difícil e felizmente se resolveu”, diz o juiz, ao determinar a reintegração familiar da criança. Ajustando a orquestra Quando a criança ou adolescente é acolhido, a entidade de acolhimento tem o prazo de 30 dias para apresentação do Plano Inpidual de Atendimento (PIA), documento elaborado pela equipe técnica da instituição a fim de nortear ações para a proteção integral, a autonomia e a reinserção familiar do acolhido. Desde abril deste ano, a Vara de Infância do TJDFT passou a fazer audiências de apresentação e homologação do PIA, nas quais já pode ser definida a situação da criança. De lá para cá, foram feitas 57 audiências e outras 24 já estão agendadas para ocorrer até outubro. “Desde 2010 realizando audiências concentradas nas entidades, atingimos um nível de controle que nos permitiu enxergar que era hora de fazer ajustes logo no início da medida de acolhimento, quando se marca o caminho e o ritmo processual. É como afinar a orquestra”, explica o juiz Rodovalho. Luiza FarielloAgência CNJ de Notícias
22/08/2017 (00:00)
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