Justiça itinerante leva cidadania à população carente do Paraná

Ao fazer o registro de nascimento de um idoso no distrito de Socavão, situado a três horas de Curitiba/PR, os juízes da comitiva de Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) não contavam com trabalho que teriam pela frente. Isso porque o senhor em questão tinha oito filhos que, a partir da certidão do pai, puderam finalmente incluir o nome dele em seus documentos. Depois disso, foi a vez dos netos, e das testemunhas presentes, e dos filhos deles, todos sem registros. Com tantas emissões de documentos, a comitiva acabou ficando das oito horas da manhã às onze da noite na comunidade, extremamente carente apesar de pertencer a Castro, próspera cidade leiteira e turística, do qual está separado por dez quilômetros de uma estrada de terra. O trabalho faz parte do programa do tribunal chamado “Justiça no bairro”, que percorre, há vinte anos, tanto bairros mais vulneráveis de Curitiba, quanto a região do Vale do Ribeira, que possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Paraná e comunidades que ainda vivem do escambo. A caravana de justiça costuma levar a estas regiões juízes, servidores, advogados e médicos voluntários – estes últimos costumam realizar mil perícias clínicas por dia para demandas referentes ao Instituto Nacional da Previdência Social (INSS). “Muitas pessoas ajuízam pedidos de benefícios e ficam esperando por anos porque não há médico no local para fazer a perícia e também não têm condição de pagar”, diz a desembargadora Joeci Machado Camargo, coordenadora do programa de justiça itinerante no TJPR. Desembargadora Joeci Machado Camargo, da Justiça itinerante do Paraná, com equipe que atende população carente. Em 2016, o programa de justiça itinerante no Paraná realizou 29 mil audiências e 300 mil atendimentos, seis mil perícias médicas e acordos pré-processuais que resultaram em uma economia de R$ 4 milhões para o tribunal em ações que deixaram de tramitar. Para a conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Daldice Santana, presidente da Comissão de Acesso à Justiça e Cidadania do órgão, não são raras as vezes em que se pode identificar que a população é mais carente onde há mais distanciamento físico do Poder Judiciário e de outros serviços públicos. “A Justiça Itinerante é movida pela criatividade, pelo empenho e pela dedicação de juízes, servidores públicos e colaboradores, representando a ideia, como diria a Ministra Cármen Lúcia, de um ser humano cuidando de outro ser humano. É um trabalho que dignifica a função de todas as pessoas envolvidas, indo além das próprias forças inpiduais”, diz a conselheira Daldice. Demandas de família A professora Sueli de Jesus Monteiro conseguiu, no programa Justiça no Bairro, formalizar a adoção de seu filho de 17 anos, criado por ela desde o nascimento. A professora tinha apenas a guarda do adolescente, que convivia com a genitora biológica, uma ex-empregada doméstica de Sueli. Com a concordância da genitora, Sueli e seu marido conseguiram fazer a adoção perante a Justiça. “O que meu filho mais queria era ter o nosso nome na certidão dele. Ficamos impressionados com o atendimento, que foi feito com toda delicadeza e profissionalismo, recebemos uma verdadeira aula sobre as leis”, diz Sueli. O caso ocorreu em Curitiba, mas as demandas de família estão presentes em todos os municípios percorridos pela caravana, especialmente em regiões mais carentes e que são o retrato da desigualdade social do país. Em Socavão, situado às margens do Rio Iapó, a desembargadora Joeci se deparou com uma comunidade em que a maioria das pessoas não possuía nem o registro de nascimento. A região, no entanto, pertence ao município de Castro, ponto obrigatório de passagem dos tropeiros que seguiam do Rio Grande do Sul para Sorocaba (SP). No início deste século se torno alvo da imigração alemã e holandesa e hoje é um centro de referência agrícola e pecuário. Depois de fazer a exaustiva regularização de documentos de toda comunidade, uma moça pediu, à desembargadora, roupas para sua família. No dia seguinte, a magistrada conseguiu uma doação de cem peças de roupa com um lojista de um shopping em Paranavaí que se sensibilizou com as histórias que a magistrada contou sobre a região. Casamentos de novela Em 2003, durante um mutirão de Justiça Itinerante, uma menina de cerca de sete anos se aproximou da desembargadora Joeci com um pedido: “a senhora pode casar meus pais?”. A desembargadora questionou então qual a importância disso para a menina, que respondeu que gostaria muito de ter na casa dela um porta-retrato de casamento, assim como ela via na casa de seus vizinhos. A desembargadora realizou o casamento dos pais da menina e, desde então, passou a fazer casamentos coletivos pelas comarcas do interior do Paraná – já foram feitos mais de 20 mil casamentos. A equipe de Justiça itinerante leva de 60 a 90 dias para organizar a cerimônia, que envolve desde a convocação dos casais que não têm condições de arcar com a despesa, por meio de um levantamento no Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) e a atualização de documentação, até a parceria com o Sesc e Senac para organizar a decoração, bolo e presentes. “Muitas vezes conseguimos levar uma orquestra e a comunidade se reúne para coletar vestidos de noiva, fazemos uma rede de ajuda”, diz a desembargadora. Tantas cerimônias renderam à magistrada histórias que mais parecem enredo de novela. Em um casamento coletivo em um pequeno município no Vale da Ribeira, ela pediu que os noivos mais velhos contassem a sua história, homenageando, dessa forma, todos os futuros casais presentes. Todos pararam para ouvir “dona” Pietra, que começou a namorar “seu” Júlio aos quinze anos. O namoro foi impedido pelos pais de Júlio, pelo fato de Pietra ser negra e pobre. Pietra casou-se com outra pessoa, um homem que costumava agredi-la e a abandonou na maternidade, após o nascimento do quarto filho deles. Pietra contou que saiu do hospital com muita dificuldade, a barriga sangrando pelos pontos da cesárea, e caminhou até o ponto de ônibus mais próximo, carregando o bebê. Chegando lá, sem conseguir aguentar a dor, foi caindo no chão. Quem a segurou e impediu a queda foi justamente o seu Júlio, que nunca havia casado e esperava por ela durante toda a vida. Júlio criou os quatro filhos de Pietra e, naquele dia, décadas depois, finalmente o casal realizava o sonho de se casar. Clique aqui para ler, também, a matéria especial "Justiça Itinerante: juízes vão até os ribeirinhos da Amazônia" publicada na última terça-feira (4/7). Clique aqui para ler a matéria especial “Justiça Itinerante: juízes nordestinos levam cidadania à população” Clique aqui para ler a matéria especial "Justiça Itinerante vai aos quilombolas e pantaneiros do Centro-Oeste" Clique aqui para ler a matéria especial “Justiça Itinerante auxilia população carente de Minas e Rio” Luiza Fariello Agência CNJ de Notícias
24/07/2017 (00:00)
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